Orlando Faccini Neto[1]

Getúlio Humberto Barbosa de Sá[2]

            

 

RESUMO: O presente artigo busca analisar o papel de garantidor assumido pelo Compliance Officer e a importância de se estabelecer, nos programas de integridade das empresas ou até mesmo no contrato de trabalho dos encarregados de vigilância, o job description para o exercício do cargo. Essa definição tem o condão de proteger não apenas esses garantidores específicos, mas também os administradores das empresas e demais empregados, tendo em vista que, ao descrever o campo de ação do Compliance Officer, informam esses encarregados do adequado desempenho de seus deveres de vigilância e delimitam a esfera de responsabilidade no âmbito da empresa.

 

ABSTRACT: This article seeks to analyze the role of guarantor assumed by the Compliance Officer and the importance of establishing, in the integrity programs of the companies or even in the employment contract of the supervisors, the job description for the exercise of the position. This definition is able to protect not only these specific guarantors, but also the company directors and other employees, since, when describing the Compliance Officer's field of action, they inform these officers of the proper performance of their surveillance duties and delimit the sphere of responsibility within the company. 

 

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade penal por omissão imprópria no âmbito de empresas. Programas de Compliance. Deveres de vigilância. Posição de garante. Job description.

 

  

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Todo programa de Compliance tem como um de seus objetivos fazer uma autorregulação das atividades da empresa, seja ela pequena, média ou grande, conformando seus procedimentos e política interna às regras que balizam o seu ramo de atividade econômica. Surge assim uma importante ferramenta de gestão para desenvolver a governança institucional.

O programa de integridade empresarial deve ser implantado de forma didática e detalhada para auxiliar os membros atuantes no âmbito da pessoa jurídica na adequação do desempenho de suas atividades às regras e a procedimentos legais impostos pela legislação vigente.

No bojo do programa de Compliance há uma parte específica que tem como propósito prevenir crimes no seio da empresa, utilizando de mecanismos de controle de seus órgãos e funcionários como, por exemplo, a avaliação dos riscos aos quais esses funcionários e a pessoa jurídica estão expostos e a correta observância destes colaboradores aos padrões de comportamento ditados pelos códigos de conduta, que é denominada de Criminal Compliance.

O Criminal Compliance tem a cada dia ganhado mais importância na prevenção de delitos na seara econômica internacional. As Convenções Internacionais, como a Convenção da ONU – Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção[3], a Convenção da OEA – Convenção Interamericana Contra a Corrupção[4] e a Convenção da OCDE – Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais[5], impulsionaram a aceitação dos programas de compliance no universo corporativo. 

A aderência por parte das empresas aos programas de integridade se deve, em certa medida, ao surgimento de uma nova geração de leis fomentadas pelos países que ratificaram as convenções internacionais de combate às fraudes e à corrupção. Essas novas leis forçaram as sociedades empresariais a mudarem os seus perfis de atuação no mercado, primando pela ética e transparência no desenvolvimento de suas operações.

Nesse contexto, a promulgação da FCPA – Foreign Corrupt Practis Act, nos Estados Unidos, e do UKBA – Unites Kingdom Bribery Act, no Reino Unido, influenciaram várias legislações de outros países, inclusive a brasileira, onde, a partir do final da década de 1980, surgiram as primeiras iniciativas de adequação aos novos pilares de combate aos crimes econômicos.

O Brasil, como signatário de todas as convenções internacionais recém mencionadas que tratam da matéria, também desenvolveu seu arcabouço legal de combate aos crimes praticados por meio de organizações estratificadas de poder, tanto através de leis de conteúdo penal como por legislações de cunho administrativo[6].

O pano de fundo para o surgimento dessas novas leis afetas a evitar os crimes cometidos na esfera de atuação das empresas pode ser atribuído, em parte, à crescente utilização dos tipos penais omissivos impróprios como forma de imputação, principalmente através da figura do garantidor, comumente conhecido por sua posição de garante[7].

Sob esse prisma, será analisado, neste artigo, mediante a observação da lei penal brasileira e da doutrina, o papel de garantidor assumido pelo Compliance Officer[8] e qual a importância de se estabelecer, nos programas de integridade das empresas ou até mesmo no contrato de trabalho do encarregado de vigilância, o job description[9] para o exercício do cargo, ou seja, a descrição das funções, raio de atuação, seus deveres e obrigações.

Primeiramente, caberá esclarecer o que é a responsabilidade omissiva imprópria, que tem sua capitulação no artigo 13, § 2º do Código Penal Brasileiro, e configura uma alternativa para a responsabilização criminal dos membros de um aparato de poder organizado, no caso, para a imputação dos dirigentes e empregados das empresas, que deixaram de fazer o que era possível e exigível para evitar um determinado ato delitivo.

Após, serão analisados os deveres originários de vigilância, que residem no rol de incumbência dos administradores e demais dirigentes da empresa. Assim, após discorrer sobre as formas de responsabilidade dos membros da empresa, seus dirigentes e encarregados com deveres de vigilância, verificaremos como ocorrem as hipóteses de incidência dos delitos por omissão conforme o tipo de administração exercida na empresa.

Em seguida, verificaremos as situações relacionadas às delegações dos deveres de agir e vigiar e, por fim, a concentração desses deveres no cargo do Compliance Officer concomitante com a explicação sobre a importância do Job Description como fator de limitação dos deveres e da responsabilidade penal inerentes ao exercício desse cargo.

 

2. A INGERÊNCIA E O DEVER DE GARANTE

 

O nosso Código Penal, em seu artigo 13, descreve como se dá o crime praticado por omissão. No parágrafo segundo do mesmo artigo é descrita a sua relevância penal, denominada pela doutrina como omissão imprópria, como aquela em que o omitente deixou de cumprir com o seu dever de evitar o resultado de uma ação delituosa[10]. E nas alíneas desse mesmo dispositivo penal, inserem-se as três fontes dos deveres de garantia: a lei, a assunção e a ingerência.

Para o presente estudo, dá-se especial atenção à última fonte de dever de garantia, a ingerência, que está na gênese dos crimes de omissão imprópria, prevista na alínea “c”, § 2º, do art. 13 do Código Penal, e que diz respeito ao dever de impedir um resultado delituoso imposto a quem criou, com um comportamento anterior, um risco da ocorrência desse mesmo resultado.

Essa especial referência aos crimes omissivos por ingerência, ao se tratar da responsabilidade penal por omissão no contexto empresarial, dá-se pela própria base de justificação legal para a exigência de um programa de compliance. A complexa forma de organização e atividade da empresa cria o risco da ocorrência de crimes. Daí deriva a necessidade e o dever dessa mesma empresa de evitar o resultado, mediante o desenvolvimento de um cuidadoso e efetivo programa de compliance.

A definição dos crimes omissivos impróprios na parte geral do Código Penal, os quais se concretizam pelas três fontes de deveres de garantia positivadas em nosso códex criminal, se deve ao fato de não existirem, em nosso ordenamento jurídico, tipos penais que abarquem a punibilidade da conduta omissiva daquele que deveria ter o dever de agir para evitá-la. Daí a engenhosa construção dogmática.

A inexistência de um tipo penal próprio cria uma série de dificuldades na aplicação dessas fontes dos deveres de garantia aos casos sub judice, sendo a ingerência a mais problemática de se aplicar aos casos concretos. 

Como bem explica Antônio Martins-Costa[11], no que diz respeito à figura da omissão por ingerência, sua configuração ocorreu com base na Teoria Formal do Dever Jurídico desenvolvida por Feuerbach, e avalia que esses deveres de garantias são controvertidos quando da sua aplicação, verbis:

 

Desde a sua origem na teoria formal do dever jurídico, a ingerência foi uma fonte de deveres de garantia que apresentou inúmeros problemas. Em primeiro lugar, porque ela representa uma contradição interna da teoria, pois leva a um abandono de seu ponto de partida formal e de sua fundamentação originária, uma vez que os deveres de garantia que nascem da ingerência não têm fundamento jurídico. De fato, ao contrário da fontes da “lei” e do “contrato” – que se baseiam na forma como Feuerbach entendia que o Estado poderia justificadamente impor obrigações positivas aos cidadãos –, a ingerência, inicialmente proposta por Stübel como uma complementação  aos deveres formais de Feuerbach, tem origem num pensamento causal-naturalista: o que justifica a imputação do resultado não é um especial fundamento jurídico, mas o fato de que ele se origina num curso causal que foi desencadeado previamente por uma ação do omitente. Em segundo lugar, como seu fundamento tem essa origem naturalista, e como de um ser não pode ser extraído um dever-ser, é difícil a definição do real conteúdo e dos limites da ingerência.


Assim, a ingerência, por muito tempo, serviu como uma “válvula de escape” em que se enquadravam todos os casos que não poderiam ser fundamentados a partir de deveres legais ou contratuais, mas cuja impunidade repugnava o sentimento ético-jurídico vigente, mesmo que com pouca ou nenhuma relação tivessem com a verdadeira ingerência.

 

3. AS LIMITAÇÕES À IMPUTAÇÃO INDIVIDUAL NO CONTEXTO DAS EMPRESAS

 

Nos dias atuais, observamos muitos obstáculos na aplicação do direito penal tradicional às novas formas de incriminação da pessoa física que age em nome de uma corporação, ou que detém poderes para definir seus caminhos, o que tem exigido da dogmática penal vigente especial atenção para dirimir os problemas relativos à autoria em crimes cometidos na forma de omissão.

É que a dogmática que subsidia o direito penal tradicional está pautada na ação individual. Para essa dogmática, a responsabilidade penal tem como referência um indivíduo que pratica um comportamento proibido pela norma penal e que, tendo consciência do erro, poderia de qualquer forma o evitar. 

Surgem daí vários obstáculos à correta aplicação da dogmática penal clássica, que lastreia grande parte da legislação penal vigente em nosso país, por exemplo, a parte geral do Código Penal (Decreto 2.848/1940). 

Diante das dificuldades em determinar a autoria nas complexas relações existentes na organização empresarial frente às novas modalidades de criminalidade econômica, e pela impossibilidade de se aplicar as regras do ordenamento penal tradicional, várias teorias penais são utilizadas para suprir essas lacunas.

Em 1963, Claus Roxin[12] apresenta sua teoria sobre a autoria mediata por meio do domínio da organização em uma palestra realizada na Universidade de Hamburgo, quando da sua posse como professor, intitulada “Crimes no âmbito de aparatos organizados de poder”.

À época, a nova teoria tinha por base a denominada Teoria do Domínio do Fato, apresentada ao mundo jurídico por Hans Welzel em 1939[13], e objetivava determinar com precisão a autoria de delitos cometidos na esfera de atuação de entes organizados, por exemplo, os praticados durante guerras e em países que vivem em estado de exceção. Baseava-se em três formas típicas que determinavam o domínio de um acontecimento sem que o autor estivesse presente no momento da execução.

Essas três formas típicas de execução de um ilícito cometido na alçada de atuação de uma organização estruturada, seguindo uma ordem de comando, se davam das seguintes formas: i) por coação imposta ao executor da ordem; ii) por meio de uma trama arquitetada para enganar o executor da ordem e iii) por ordem expressa, sem coação e sem enganar o executor, utilizando o aparato de poder que garanta a execução da ordem.

As formas mencionadas são assim exemplificadas por Claus Roxin[14]:

[...] a fungibilidade (substitutibilidade ilimitada do autor imediato) que garante ao homem de trás da execução do fato e lhe permite dominar os acontecimentos. O atuante imediato é apenas uma roldana substituível dentro das engrenagens do aparato de poder. Isto nada muda quanto à punibilidade do autor imediato que, ao fim, realiza um homicídio com as próprias mãos. No entanto, os “comandantes” da alavanca de controle do aparato de poder são os autores mediatos, uma vez que a execução do fato, diferentemente da instigação, não depende da decisão do autor imediato.

Prosseguindo na explicação do tema, Roxin observa que “as funções do autor imediato e as do autor mediato, lógica e teleologicamente, podem coexistir lado a lado”[15]. Essa conclusão, à época de sua apresentação, contrariava toda a dogmática estabelecida e difundida na Europa continental. O Direito Penal vigente trilhava as orientações da dogmática penal tradicional que, como dito anteriormente, tinha foco na ação individual do autor imediato.

A teoria se mostrava inovadora à medida que ampliava a forma de autoria mediata, tendo o domínio do fato como principal critério para a imputação. A inovação trazida pela teoria mencionada jogou luz ao instituto da autoria delitiva. Porém, somente foi utilizada para equacionar problemas relativos à autoria em crimes praticados pelas empresas nos anos 2000.

Em Acórdão do Superior Tribunal Alemão[16], a teoria foi transplantada à esfera dos julgamentos relacionados aos crimes de Estado, como, por exemplo, a ocorrência de genocídio em países que estão sob regimes totalitários e opressores, deixando de ficar adstrita ao âmbito para o qual foi concebida, de aplicação da norma penal na tutela das atividades empresariais.

Da data de apresentação desenvolvida por Roxin até os dias atuais, a teoria experimentou as mais diversas interpretações por parte do Poder Judiciário de várias nações. Como se poderá ver adiante, a maioria dessas interpretações alargaram o alcance do seu escopo, sem a devida observância de seus parâmetros. O motivo da ampliação do objeto da teoria é possibilitar, no que tange aos crimes praticados em aparatos organizados de poder, o alcance de toda a cadeia de comando, ou seja, todos que de alguma forma contribuíram, conscientemente ou não, para causar uma lesão a um bem jurídico ou colocá-lo em perigo.

A utilização indiscriminada dessas teorias, como panaceia para solução de todos os problemas para identificação individualizada da autoria delitiva, no âmbito dos crimes praticados por meio de empresas, se deve em parte pela limitação da aplicação dos institutos tradicionais do direito penal que dispõem sobre a matéria.

O próprio conceito de empresa, como união organizada de pessoas para o exercício de atividade econômica, já indica suas características como a pluralidade de agentes – não há apenas um indivíduo praticando um delito, mas uma gama de agentes que praticam a ação delituosa – e a organização destes de forma hierarquizada determinando a atuação destes mesmos agentes conforme a cadeia de comando. 

Os pressupostos de imputação individual (autoria imediata, mediata, coautoria e participação) quando aferidos em aparatos de poder são de difícil percepção, limitando as soluções encontradas no campo de ação do direito penal tradicional.

A limitação dos institutos tradicionais para identificação da autoria no contexto das empresas – em especial nos crimes de omissão – abriu lacunas na dogmática penal tradicional, que estão sendo preenchidas pelos entendimentos jurisprudenciais ou doutrinários firmados a partir de interpretações de elevado grau de subjetividade desaguando em perigosas distorções das teorias do domínio do fato e do domínio da organização desenvolvidas por Claus Roxin.

A respeito do tema, cabe destaque à observação de Renato de Mello Jorge Silveira e Eduardo Saad-Diniz[17], que revela os perigos das formas atuais de interpretação jurisprudencial sobre os problemas relativos à teoria do delito:

O problema relativo à autoria é um velho conhecido do Direito Penal. Normalmente a jurisprudência – notadamente a brasileira – tem por hábito simplifica-la de maneira dramática e perigosa. Tal perigo é bastante acentuado quando se lida com situações-limite, como a de novas fronteiras penais, como no caso é de saber quem é o responsável pelo cumprimento dos deveres impostos ou, aqui melhor pontuando, de atribuição de responsabilidades penais individuais pelo não cumprimento de deveres inerentes às empresas, visto nos Compliance Programs.

Exemplo notório da tentativa de preencher as lacunas do direito penal tradicional na imputação de autoria delitiva por meio de umas das formas típicas da omissão ocorreu no julgamento da Ação Penal nº 470, denominada Mensalão, no Supremo Tribunal Federal.

Na ocasião, vários empresários foram réus em conjunto com uma gama considerável de membros da classe política nacional. Tendo dificuldades para apurar a autoria dos crimes indicados pelo Ministério Público naquela Ação Penal, o STF reinterpretou – para muitos juristas de forma absolutamente equivocada – a teoria do domínio do fato com a finalidade de alcançar os empresários que estavam nos cargos mais elevados de comando das empresas, bem como políticos do Executivo e Legislativo que, à época, exerciam o Poder público no país.

O que se viu na interpretação da Suprema Corte foi uma simbiose de teorias: a teoria do domínio do fato foi mesclada à teoria do domínio da organização e à posição de garantidor.

Tendo enormes dificuldades para enquadrar as condutas de alguns empresários e políticos aos dispositivos do Código Penal, como deveria ter acontecido, em especial na forma do artigo 29 (concurso de pessoas), a solução encontrada à época pelo STF foi a interpretação carregada de subjetividade em suas justificativas para subsidiar os éditos condenatórios de vários atores da cena nacional.

Por exemplo: foram imputados delitos sem a correta identificação do nexo causal entre a conduta omissiva dos acusados e o resultado (delito), ou sem que houvesse um concreto dever de agir previamente estabelecido; ou sem a identificação de alguns dos elementos dos tipos penais imputados, por exemplo, a imputação de delitos de corrupção mediante a consideração de atos de ofício genéricos e desacompanhados de prova. 

Nesse passo, tais decretos condenatórios foram exarados à mingua de critérios objetivos que pudessem satisfazer a clareza necessária que deve permear os éditos dessa categoria.

A simplificação do raciocínio jurídico aplicado na Ação Penal 470 foi amplificada e utilizada sistematicamente nos Tribunais no Brasil afora, contribuindo para o aumento da onda punitivista que se seguiu, deixando de observar as regras constitucionais dos direitos e garantias do cidadão.

Como explica Verena Holanda de Mendonça Alves[18], verbis:

A decisão do Supremo do Supremo Tribunal Federal violou o princípio da legalidade (art. 5, XXXIX, CF), principalmente quando se observa que não se pode aplicar uma reprimenda penal em casos que não quedaram comprovadas qualquer ação ou omissão. Ocorreu a criação de uma nova teoria, desconectada com os dizeres de culpabilidade nacional e a ela foi atribuído o nome da famosa teoria sintetizada por Roxin (se utilizando do prestígio que o nome do autor recebe) como simples recurso retórico, como apelo e não como fundamento.

Nas palavras de  Luís Greco, citado por Verena Alves[19]:

A decisão brasileira revela-se como uma aplicação primitiva de um modelo de responsabilidade penal por pertencimento a um grupo, que se tentou mascarar por meio de um suposto recurso a uma teoria moderna.

Na mesma esteira do casuísmo e dos vários equívocos de interpretação da justiça brasileira em casos de imputação da autoria de crimes praticados no âmbito das empresas, como ocorreu no Caso Mensalão, é importante reproduzir o comentário do próprio Roxin sobre um julgamento realizado pela 4ª Turma do BGH alemão, ainda em 1998, em que tece críticas ao uso inadequado da teoria por ele desenvolvida:

Por meio de um acordão da 4ª Turma, dirigentes de uma sociedade limitada foram apenados como autores mediatos nos estelionatos cometidos pelos empregados desta, apesar de não se ter podido “comprovar nenhuma atuação concreta ou, também, um conhecimento atual dos réus com relação às respectivas encomendas das mercadorias”. Pois, como “autor por domínio do fato” entraria “igualmente em consideração aquele que aproveita as condições, que desatam cursos criminosos regulares, dadas pelas estruturas da organização”. Isto o Superior Tribunal Federal Alemão “afirmou também para as atividades empresariais”. Não se fundamentou, em detalhes, a decisão sobre como, porém, deve existir um domínio do fato em um acontecimento, no qual os acusados, em concreto, nem pelo menos influíram. O domínio do fato é aqui utilizado com o fim de se imputar a autoria em qualquer forma de responsabilidade, não somente na mediata, a todo aquele que está no nível de direção de uma empresa. No entanto, para isto, este conceito não é adequado[20].  

Dessa forma, verifica-se que as teorias do domínio do fato e do domínio da organização, diferentemente da forma como vêm sendo empregadas na justiça brasileira, partem de um sistema diferenciador lastreado em pressupostos restritos do seu alcance. O alargamento do conceito central da teoria, com o propósito de alcançar todos em uma cadeia de comando, sem a observação dos pressupostos fixados (poder de mando, estrutura do aparato de poder e fungibilidade do executor direto), é uma subversão da sua utilização.

Sem o preenchimento desses três pressupostos e sem a comprovação robusta de que o autor teve pleno domínio da ação típica, controlando-a ou interrompendo-a quando quisesse, não há que se falar em aplicação concreta das mencionadas teorias.

 

4. A ADMINISTRAÇÃO EMPRESARIAL E OS LIMITES DA RESPONSABILIDADE PENAL DOS SEUS GESTORES

 

As dificuldades para a imputação individual no âmbito das organizações empresariais, como já dito, são imensas. Nas palavras de Heloisa Estellita[21], a divisão de funções é “um dos aspectos da organização da atividade econômica em empresa que acarreta maiores dificuldades para um direito penal cujo paradigma é o da autoria direta dolosa individual”. Soma-se a isso a descentralização da estrutura hierárquica empresarial e a dificuldade na filtragem de informações dentro da organização da empresa, características que, segundo a autora, conduzem a uma multiplicação de responsáveis ou, até mesmo, “a um bloqueio da imputação penal pela falta de pressupostos objetivos ou subjetivos”. 

Essa irresponsabilidade organizada, como visto, leva a jurisprudência a desenvolver novas formas de responsabilidade penal, inadequadas ao direito penal concebido no país e ainda sem eficácia.

Justamente por essa tendência de responsabilização generalizada de todos os administradores e encarregados de vigilância é que se faz necessário delimitar as funções e deveres de agir. Se a lei não o faz, que a própria empresa o faça, mediante o estabelecimento de regras e parâmetros internos de atuação.

Nesse contexto, e sem a pretensão de esgotar o assunto, vale trazer um panorama de como é tradicionalmente desenvolvido o dever de vigilância dentro das empresas a fim de entender como se dá a imputação de responsabilidade ao garante.

Existem dois modelos mais comuns de se administrar as empresas, notadamente a de Sociedade Limitada[22]: a administração realizada diretamente pelos sócios e a administração executiva, aquela exercida por administradores não sócios. A relevância de se falar sobre essas duas formas de administração se dá com o fim de diferenciar os graus de responsabilidade penal de cada tipo de gestão.

Reportando novamente ao estudo realizado por Heloisa Estellita[23], podemos dizer, no que se refere à administração exercida pelos sócios de uma sociedade limitada, que a responsabilidade penal a eles atribuída se dá de forma horizontal. Isso porque essa responsabilidade, para efeitos de aferição na seara penal, é distribuída conforme o número de sócios e também suas funções. Assim, todos são responsáveis pelas práticas empresariais na medida de suas contribuições. Essa modalidade de responsabilidade penal ocorre em virtude de os sócios “deterem todos os poderes de decisão, gestão da sociedade e da execução das atividades econômicas de seu objeto social”[24].

No caso, não haverá separação entre a propriedade da empresa e sua gestão. A acumulação dos deveres inerentes ao desempenho das funções de sócio e gestor ao mesmo tempo deixa mais evidente e importante os seus deveres de vigilância. Nesse caso, falamos em deveres originários, por serem oriundos dos detentores dos poderes de decisão da empresa.

Já o mesmo não ocorre quando a administração da sociedade for exercida por pessoa não participante do contrato social, ou seja, por terceiro contratado para exercer os poderes delegados pelos sócios. Aqui tratamos dos deveres secundários de vigilância.

A esses administradores, que também deverão observar os deveres de vigilância, só serão responsabilizados na medida da delegação de poderes a eles atribuídos pelos sócios. O fato relevante que ocorre nessa delegação dos poderes de gestão de uma empresa é que os delegados – administradores que recebem o mandato da gestão – não conseguem, na maioria das vezes, exercer os poderes delegados sem a ajuda de colaboradores.

No desenvolvimento da gestão, esses administradores vão delegar seus poderes aos colaboradores em conformidade com a função exercida por cada um dentro de uma estrutura hierarquizada. Ao transferir parte de seus poderes de gestão, esses administradores assumem uma posição de garantidores dos deveres de vigilância, no limite da sua responsabilidade fixada por suas atribuições na estrutura organizacional.

Sendo a estrutura departamentalizada, a sua responsabilidade se dá de forma horizontal e seus deveres de vigilância vão até o limite da responsabilidade do gestor de outro departamento. Porém, em relação aos demais colaboradores, subordinados ao garantidor, se diz que a responsabilidade penal será sempre vertical. Na apuração dessa responsabilidade, verifica-se a relação verticalizada entre o gestor e a sua equipe.

Essas formas de administrar as sociedades limitadas, no plano da imputação da autoria delitiva, estabelecem os critérios para se avaliar a posição de garante e, ao mesmo tempo, determinar se os deveres de vigilância decorrem dos deveres originários ou secundários.

Em suma, os deveres originários são diretamente ligados aos sócios, e os deveres secundários afetos aos que exercem os poderes de gestão delegados, tornando assim novos garantidores dos deveres de vigilância.

 

5. O COMPLIANCE OFFICER E O JOB DESCRIPTION

 

Os programas de conformidade e integridade surgem como instrumento de contenção de riscos dentro da empresa, a qual busca os meios possíveis de evitar o cometimento de delitos, com a previsão de códigos próprios de conduta, canais internos de denúncias e de fiscalização e auditoria, capacitação dos funcionários, entre outros. 

Na nova figura de garantidor dos deveres de vigilância, para verificar se esse programa de integridade tem sido aplicado corretamente, é que se insere o compliance officer. É nele que vai ocorrer a concentração das atividades de coleta, seleção e sistematização de informações sobre possíveis práticas criminosas no horizonte das empresas. Essa concentração de poderes eleva sobremaneira os deveres de vigilância desses profissionais.

Dessa forma, torna-se imprescindível que a descrição desses deveres seja definida com exatidão e clareza. Daí a importância do job description para a compreensão do compliance officer da gama de deveres de vigilância que devem ser por ele observados.

Thomas Rotsh, citado por Heloísa Estellita[25] destaca que:

[...] é necessária a conjunção do fundamento jurídico – normalmente, o contrato de trabalho – com a assunção fática, especialmente para o caso dos compliance officers que não integram a administração da empresa, dentre outros, para quem, sendo a posição de garantidor do compliance officer sempre derivada, não se pode prescindir da atribuição das tarefas desse encarregado de vigilância para fundá-la somente na assunção, é que, quando se tratar de delegação, há uma relação entre as partes: o delegado só pode assumir aquilo que o delegante lhe transfere.

Portanto, é de singular importância a especificação das tarefas e deveres do compliance officer para que se compatibilize com o grau de delegação formulada. O job description, de preferência, deve constar no manual de conformidade e integridade da empresa e no contrato de trabalho do encarregado de compliance. 

A descrição clara e exata das tarefas e deveres do encarregado do compliance program de uma empresa serve basicamente a dois propósitos: o primeiro é evidente e literal e se traduz na descrição das obrigações para com os deveres de vigilância estampados no job descripition e no contrato de trabalho, a fim de orientar o próprio garantidor no desempenho de suas funções. O outro, oculto, não evidenciado literalmente em um job description pura e tampouco no contrato de trabalho, mas de fundamental importância para determinação da responsabilidade penal em caso de eventual non compliance, qual seja, a excelência no cumprimento das regras de integridade, indicando quais eram os deveres de agir pré-estabelecidos e todas as ações praticadas para evitar o resultado de um ato ilícito, sempre dentro dos limites dos poderes delegados.

Essas definições são significativas para que o compliance officer possa exercer a observância das regras e procedimentos dentro da empresa, tendo a incumbência de vigilância para evitar a prática de ilícitos – não só os de cunho penal – mas também para evitar a quebra dos padrões éticos pelos integrantes da empresa para com ela própria, e, também, para com terceiros estranhos aos seus quadros. 

Nesse ponto, mostram-se valiosas e pertinentes as lições de Dennis Bock, reveladas por Renato de Mello Jorge Silveira[26], para quem “os fundamentos jurídicos-penais do compliance têm em comum o parâmetro básico de que existe um dever jurídico quanto às medidas possíveis, necessárias e exigíveis à prevenção de infrações pela empresa”. 

Aspecto importante que deve ser frisado diz respeito à responsabilidade originária dos dirigentes das empresas. Não obstante a lição de Bock, sobre os deveres jurídicos do encarregado pelo compliance, não se pode olvidar que a palavra final das decisões se encontra nas mãos dos dirigentes da empresa. 

É como relatam Helena Regina Lobo da Costa e Marina Pinhão Coelho Araújo[27] em seus estudos sobre o tema: 

A estrutura que responderá pelo setor de compliance empresarial, seja ela centrada em uma pessoa, em uma junta de pessoas, ou ainda em um representante externo, não definirá as decisões a serem tomadas por esta companhia. Ela é apenas o alerta sobre os riscos evidentes e inerentes às decisões.

A afirmação pode parecer um tanto óbvia, mas, muitas vezes, parte-se do pressuposto que o compliance officer pode e deve fazer o impossível para evitar qualquer tipo de conduta ilícita ou indesejada na companhia. Se assim o fosse, o compliance officer deveria ser, em verdade, o executivo principal da companhia e não apenas uma área de assessoria na administração”.


Desse modo, como não há previsão legal, no Brasil, de critérios para o exercício dos deveres de vigilância do compliance officer, faltam parâmentros claros para a aferição de sua responsabilidade em casos concretos. As tarefas ficam descentralizadas entre os diferentes cargos e departamentos de direção e administração da empresa ou, como mencionado, centralizado completamente no compliance officer.

Nesse contexto é que se enfatiza, mais uma vez, a importância de um bom programa de Compliance e do job descriptioncomo fatores de limitação e de distribuição das responsabilidades com os deveres de vigilância. A adequada divisão e conhecimento prévios de funções e atribuições, além de delimitar qual o âmbito de responsabilidade do compliance officer e como ele conduzirá a atividade de vigilância na empresa, auxilia na contenção de riscos dentro da organização empresarial, e impulsiona o cumprimento desses deveres não apenas pelo encarregado de vigilância por todos os administradores.

É preciso dizer, no entanto, mesmo que haja um programa de compliance na empresa e que tenha o compliance officerdado fiel cumprimento dos deveres de vigilância descritos no conteúdo de um job description e/ou, no contrato de trabalho, isso não se traduz em automática imunidade nem em redução de uma eventual pena aplicada a eles ou aos dirigentes da empresa (ou à própria pessoa jurídica, em crimes ambientais).

Isso porque não há, na legislação brasileira, previsão de institutos específicos que amparem a aplicação de medidas para a redução ou isenção de pena nos casos de constatação em juízo do cumprimento integral das regras de compliance pelos encarregados de vigilância e pelos administradores de uma empresa.

Em eventual processo criminal no qual se constata um efetivo cumprimento das regras de um programa de conformidade e integridade por um compliance officer, objeto deste estudo, a concessão judicial desses benefícios, em princípio, não poderá ser levada em conta pelo magistrado no momento de sentenciar.

No caso de uma aferição no âmbito judicial das formas de participação em um ato criminoso, cometidas pelo encarregado dos deveres de vigilância, ocorrerá na forma tradicional do direito penal vigente no nosso pais, ou seja, observando as regras da parte geral do Código Penal, da parte especial do mesmo Estatuto Criminal e em observação às leis extravagantes relacionadas ao tema, e em atenção aos comandos constitucionais.   

De qualquer maneira, mesmo com a aplicação, no Brasil, dessa forma de responsabilização penal clássica por autoria individual, e ainda que não haja previsão legal expressa de isenção ou redução da pena mediante a implementação do programa de compliance, o prévio conhecimento e delimitação de atribuições dos encarregados de vigilância – incluindo a previsão de um Job Description factível – tem a contribuir na contenção dos riscos e na imposição de limites da responsabilidade penal no âmbito da empresa, pois, como visto, facilitam a delimitação dos concretos deveres de agir.

Assim, a imputação penal vai ocorrer mediante a satisfação dos pressupostos objetivos e subjetivos, com particular ênfase, no caso dos crimes por omissão imprópria, à constatação de um prévio dever de agir da empresa de modo geral e do compliance officer em específico, e à verificação se esse dever de agir para evitar o resultado foi cumprido satisfatoriamente.

 

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

É certo que, há muito tempo, observamos os problemas enfrentados pelas partes em processos criminais que apuram a posição de garante no cotidiano de nossos tribunais. Parece já tardar o momento de o legislador definir de forma expressa a tipificação clara e direta de conferir segurança jurídica aos feitos dessa natureza. 

Pode ser que a legislação brasileira evolua no sentido de elevar ao mesmo patamar de possibilidades de redução ou isenção de pena existentes no nosso Código Penal, descrevendo o adimplemento total das regras de compliance em uma empresa, como uma das formas de exclusão da culpabilidade na modalidade da inexigibilidade de conduta diversa, tomando por base os ensinamentos de Francisco de Assis Toledo[28], no que se refere a esse tema. 

Seria, no campo do direito penal, um incentivo às empresas fomentarem, cada vez mais, a implementação dos programas de integridade, principalmente àquelas que estão expostas a intensa regulação, como é o caso das pessoas jurídicas que atuam junto ao sistema financeiro nacional. 

Enquanto isso não ocorre, o que se verifica é um contingente de decisões judiciais que imputam responsabilidade ao garantidor sem substância legal de elevada estatura que merece o tema apresentado, e como é de costume, sem a observância dos ditames da doutrina mais abalizada. A falta de uma orientação clara e retilínea sobre o assunto abre espaço às decisões arbitrárias, de profundo grau de subjetividade e sem a devida fundamentação.

Vislumbra-se, ainda, nos casos de delegação dos deveres de garantia formalizados em um job description, seja em documentos internos ou naquelas que constam em contrato de trabalho, ou até mesmo em ambos os tipos, que são firmados com terceiros não necessariamente administradores da empresa, os mesmos problemas de falta de lógica comum, de elevado grau de subjetividade e de falta de fundamentação nas decisões judiciais. 

Todo esse conjunto de circunstâncias negativas gera uma grande insegurança jurídica merecendo por parte dos legisladores e dos doutrinadores do direito penal, uma especial atenção como forma de restringir o arbítrio que carregam as decisões meramente intuitivas. 

Dessa forma, o job description, além de orientar o exercício das funções realmente desempenhadas pelo encarregado de vigilância de uma empresa, cria parâmetros para as decisões judiciais verificarem, em cada caso concreto, quais os deveres de agir atribuídos a cada compliance officer e, assim, oferece critérios mais objetivos para fundamentação das decisões. 


 

REFERÊNCIAS

 

ALVES, Verena Holanda de Mendonça. In: BECHARA, Fábio Ramazzini. Compliance e direito penal econômico, São Paulo: Almedina, 2019

COSTA, Helena Regina Lobo da; ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. Criminal compliance na AP 470, RBCCrim n. 106, 2013.

ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade Penal de Dirigentes de Empresas por Omissão, Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de Sociedades Anônimas, Limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1a Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

MARTINS-COSTA, Antônio. In Garantias penais estudo alusivo aos 20 anos de docência do professor Alexandre Wunderlich / Organizadores: Fabiane da Rosa Cavalcanti, Luciano Feldens e Alberto Ruttke; Autores: Alberto Ruttke et al., Porto Alegre: Boutique Jurídica, 2019

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. In <https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/1042/Soft-law> acesso em 11 de maio de 2020.

NASCIMENTO SILVA, Joyce Keli do. A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio da organização. Revista Liberdades, nº 17, IBCCRIM. São Paulo, set/dez. 2014, p. 69. In http://www.revistaliberdades.org.br/_upload/pdf/22/artigo04.pdf Acesso em 11 de maio de 2020.

ROXIN, Claus. In Temas de Direito Penal – Parte Geral / Luiz Greco e Danilo Lobato (coords). Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2008

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, SAAD DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo, Ed. Saraiva: 2015

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal: de acordo com a Lei nº 7.209, de 11-7-1984 e com a Constituição Federal de 1988, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994 

VADE MECUM/obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 11.ª edição, atualizada e ampliada.2011.p.239-240.



[1] Doutor em Ciências Jurídico-Criminais, pela Universidade de Lisboa-Portugal. Mestre em Direito Público pela UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – RS, Professor de Direito Penal NA Escola Superior da Magistratura/RS. Professor do Curso de Mestrado do IDP – Brasília. Professor Convidado do Curso de Especialização em Direito Penal e Política Criminal, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS. Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul.

[2] Advogado criminalista. Presidente da Comissão de Reforma Criminal da OAB/DF

[3] A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção – Convenção de Mérida, de 9 de dezembro de 2003 – teve por objetivo atacar a corrupção enquanto crime financiador das organizações criminosas, com destaque para a infiltração dessas organizações nas estruturas estatais, dedicou inúmeros dispositivos para tratar da lavagem de dinheiro. Teve sua incorporação pelo Decreto no 5.687 de 31 de janeiro de 2006. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. In<https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/1042/Soft-law> acesso em 11 de maio de 2020.

[4] A convenção da OEA, foi firmada na cidade de Caracas em 29 de março de 1996. Entrou em vigor no Brasil em 7 de outubro de 2002 pelo Decreto nº 4.410. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. In <https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/1042/Soft-law> acesso em 11 de maio de 2020.

[5] A Convenção da OCDE foi assinada em Paris em 17 de dezembro de 1997. Foi a primeira convenção internacional a tratar com eficácia o tema da corrupção. Sua incorporação ao direito brasileiro ocorreu por meio do Decreto nº 3.78 de 15 de junho de 2000. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. In<https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/1042/Soft-law> acesso em 11 de maio de 2020.

[6] Na esfera penal, a primeira iniciativa legal no país deu-se com a Lei 7.492/1986 (Lei dos Crimes Financeiros). Mais tarde, assume relevo a Lei 9.613/1998, posteriormente modificada pela Lei 12.683/2012, que teve como objetivo a prevenção do crime de lavagem de dinheiro. Ainda, outro exemplar mais atual de combate e prevenção aos crimes praticados no âmbito das empresas é a Lei 12.846/2013, regulamentada pelo Decreto 8.420/2015, e que trata, no campo do direito administrativo sancionador, dos ilícitos de corrupção cometidos através de pessoas jurídicas, a chamada Lei Anticorrupção. No tocante aos regramentos puramente administrativos que têm o propósito de controlar as boas práticas do exercício empresarial, podemos citar, a título exemplificativo, a Resolução 24/2013 do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) – que estabelece, em seus arts. 2º e 3º, os deveres de Compliance para evitar o Crime de Lavagem de Dinheiro –, a Resolução BACEN nº 4.595/2017 – que atribui maior responsabilidade ao Conselho de Administração das empresas Sociedades Anônimas em caso de falhas na conformidade, non compliance (art. 9º, Inciso II) –, dentre várias outras regras que visam a conformidade das empresas aos ditames legais para desenvolverem as suas atividades.

[7] Como exemplo, cita-se o artigo 10, inciso III e artigo 11 da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98), que impõe o dever de compliance e estabelece assim um dever de garante. Também podemos citar a Resolução do BACEN nº 4.595/2017 que, embora não cria o dever de garantia como na lei penal, serve para embasar a aferição desses deveres na apuração dos crimes omissivos, sendo, em determinadas situações, utilizada como norma penal em branco.

[8] Compliance Officer ou Chief Compliance é o termo designado aos profissionais ou grupos (setores) responsáveis por administrar um programa de compliance. Cabe a eles desenvolver e coordenar todas as políticas, ferramentas e decisões que precisam ser tomadas no âmbito do programa. Normalmente, os compliance officers atuam no ambiente interno da empresa, devido à necessidade constante de acompanhar seus atos.

[9] Job Description: em tradução livre, significa descrição das funções e responsabilidades de um cargo. Deve ser formalizado em documento próprio, no caso, em um contrato de trabalho e, também, pode constar nos manuais internos de uma empresa.

[10] Título II - Do Crime - Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. [...]

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: 

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; 

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

[11] MARTINS-COSTA, Antônio. Considerações sobre a Omissão Imprópria e a Responsabilidade Penal por Ingerência. In: Garantias penais: Estudo alusivo aos 20 anos de docência do professor Alexandre Wunderlich. Organizadores: Fabiane da Rosa Cavalcanti, Luciano Feldens e Alberto Ruttke; Autores: Alberto Ruttke et al., Porto Alegre: Boutique Jurídica, 2019, p. 47-48.

[12] ROXIN, Claus. Autoria Mediata por meio do Domínio da Organização. In: Temas de Direito Penal – Parte Geral / Luiz Greco e Danilo Lobato (Coords). Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 323-324.

[13] A Teoria do Domínio Final do Fato, foi introduzida na dogmática penal em 1939 por Hans Welzel, como forma de preencher as lacunas jurídicas deixadas pelas tradicionais teorias, objetiva e subjetiva, as quais não distinguiam satisfatoriamente – e ainda não o fazem – os conceitos de autoria e participação. Essa teoria, procura demonstrar que o ato ilícito pode se consumar mesmo sem a presença do autor, ou seja, não necessita da sua presença em todas as fases da conduta criminosa. Ainda, pode o autor utilizar-se de meios mecânicos ou de terceiros, bastando, para imputar-lhe o crime, que conserve o domínio sobre o fato (NASCIMENTO SILVA, Joyce Keli do. A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio da organização. Revista Liberdades, nº 17, IBCCRIM. São Paulo, set/dez. 2014, p. 69).

[14] ROXIN, Claus. Autoria Mediata por meio do Domínio da Organização. In: Temas de Direito Penal – Parte Geral / Luiz Greco e Danilo Lobato (Coords). Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.324.

[15] A teoria do domínio da vontade em virtude de aparatos organizados de poder ou, simplesmente, do domínio por organização foi apresentada por Roxin no ano de 1963, como forma autônoma de autoria mediata. Nas palavras do autor: “Ela [a teoria do domínio por organização] – se baseia na tese de que em uma organização delitiva os homens de trás, que ordenam fatos puníveis com poder de mando autônomo, também podem ser responsabilizados como autores mediatos, se os executores diretos igualmente forem punidos como autores plenamente responsáveis. Estes homens de trás são caracterizados, na linguagem alemã corrente, como ‘autores de escritório’ (Schreibtischtäter). ”. O modelo proposto por Roxin dispõe sobre o funcionamento das estruturas que estão à disposição de um superior. Tais estruturas funcionam sem que seja imprescindível a figura do executor do delito individualmente considerado” (NASCIMENTO SILVA, Joyce Keli do. A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio da organização. Revista Liberdades, nº 17, IBCCRIM. São Paulo, set/dez. 2014, p. 69).

[16] ROXIN, Claus. Autoria Mediata por meio do Domínio da Organização. In: Temas de Direito Penal – Parte Geral / Luiz Greco e Danilo Lobato (Coords). Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 336. 

[17] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo, Ed. Saraiva: 2015, p.128.

[18] ALVES, Verena Holanda de Mendonça. A Panacéia da Teoria do Domínio do Fato e o Compliance como Possível Solução In: BECHARA, Fábio Ramazzini. Compliance e direito penal econômico, São Paulo: Almedina, 2019, p.232.

[19] Op. Cit. 2015, p. 232.

[20] ROXIN, Claus. Autoria Mediata por meio do Domínio da Organização. In: Temas de Direito Penal – Parte Geral / Luiz Greco e Danilo Lobato (Coords). Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 338-339.

[21] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade Penal de Dirigentes de Empresas por Omissão, Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de Sociedades Anônimas, Limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p.72-73

[22] Cumpre ressaltar, aqui, que o presente artigo tem por base as empresas organizadas como Sociedades Limitadas, em virtude da intensa utilização desse modelo de sociedade empresarial no território brasileiro. É claro também que, em várias oportunidades o texto aborda circunstâncias que se adequam a outros modelos de sociedade empresarial, como é o caso das Sociedades Anônimas e nos demais tipos de sociedades comerciais. Para melhor compreensão do tema, faz-se necessário citar os seguintes artigos do Código Civil, que disciplinam a administração dessas sociedades empresariais no território nacional:

Art. 1010 - Quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão tomadas por maioria de votos, contados segundo o valor das quotas de cada um. 

Art. 1011 - O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.

Art. 1013 - A administração da sociedade, nada dispondo o contrato social, compete separadamente à cada um dos sócios. § 1º Se a administração competir separadamente a vários administradores, cada um pode impugnar operação pretendida por outro, cabendo a decisão aos sócios, por maioria de votos. 

[23] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade Penal de Dirigentes de Empresas por Omissão, Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de Sociedades Anônimas, Limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017.p. 215.

 

[24]ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade Penal de Dirigentes de Empresas por Omissão, Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de Sociedades Anônimas, Limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017.p. 217.

 

 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade Penal de Dirigentes de Empresas por Omissão, Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de Sociedades Anônimas, Limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons. p.221.

[26] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo, Ed. Saraiva: 2015. p.142.

[27] COSTA, Helena Regina Lobo da; ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. Criminal Compliance na AP 470, RBCCrim n. 106, 2013. p.223.

[28] “O princípio da não-exigibilidade, em exame, foi introduzido e desenvolvido na ciência penal, como um corolário da concepção normativa da culpabilidade, por Frank, J. Goldschmidt, Freudental e Mezger, para citar apenas os principais autores. Pressuposto desse princípio, segundo J. Goldschmidt, é a “motivação normal”. O que se quer dizer com isso é que a culpabilidade, para configurar-se, exige uma certa “normalidade das circunstâncias” que cercaram e poderiam ter influído sobre o desenvolvimento do ato volitivo do agente. Na medida em que essas circunstâncias apresentam-se significativamente anormais, deve-se suspeitar da presença de anormalidade, também, do ato volitivo. Segundo raciocínio de Bettiol, “(...) quando se parte do pressuposto de que um comportamento só é culpável na medida em que um sujeito capa haja previsto e querido o fato lesivo, deve-se necessariamente admitir que tal comportamento já não possa considerar-se culpável todas as vezes e que, por causa de uma circunstância fática, o processo psíquico de representação e de motivação se tenha formado de modo normal”. Esse mesmo raciocínio pode, evidentemente, mutatis mutandis, ser estendido aos crimes culposos, já que também no comportamento negligente ou imprudente a anormalidade do processo psíquico, “por causa de circunstâncias fáticas”, deve ser considerada em favor do agente. Muito se tem discutido sobre a extensão da aplicação do princípio em foco, entendendo alguns autores que sua utilização deva ser restringida às hipóteses previstas pelo legislador para evitar-se mais uma alegação de defesa que poderia conduzir à excessiva impunidade dos crimes. Não vemos razão para esse temor, desde que se considere a “não-exigibilidade” em seus devidos termos, isto é, não como um juízo subjetivo do próprio agente do crime, mas, ao contrário, como um momento do juízo de reprovação da culpabilidade normativa, o qual, conforme já salientamos, compete ao juiz do processo e a mais ninguém. É o que nos diz Bettiol, nesta passagem, após referir-se ao individualismo anárquico” que poderia significar a subjetivação do juízo de inexigibilidade: “Cabe ao juiz, que exprime o juízo de reprovação, avaliar a gravidade e a seriedade da situação histórica na qual o sujeito age, dentro do espírito  do sistema penal, globalmente considerado: sistema que jamais pretende prescindir de um vínculo com a realidade histórica na qual o indivíduo age e de cuja influência sobre a exigibilidade da ação conforme ao direito, o único juiz deve ser o magistrado”. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal: de acordo com a Lei nº 7.209, de 11-7-1984 e com a Constituição Federal de 1988, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 328-329.


Artigo publicado na Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal 2020 v. 17 n. 97. Disponível em "Job Description e Compliance no direito penal empresarial"

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