O grupo de trabalho da Câmara dos Deputados rejeitou a parte do projeto anticrime, apresentado pelo Ministro da Justiça, que trazia a possibilidade de ampliação da legítima defesa. A ideia era acrescentar hipóteses que abarcassem expressamente os agentes policiais ou de segurança pública, visando reduzir ou mesmo isentá-los de pena quando causassem morte durante o serviço, teoricamente agindo em legitima defesa, e quando o excesso decorresse de medo, surpresa ou violenta emoção. A iniciativa vinha sendo chamada por muitos de licença para matar.

Primeiramente, há de se esclarecer alguns conceitos. A excludente de ilicitude está positiva em nosso ordenamento jurídico no art. 23 do Código Penal e preceitua que não há crime quando o agente pratica o fato sob estado de necessidade, em legítima defesa e em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Entende-se por legítima defesa, quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. 

Temos, portanto, que a legítima defesa serve para afastar uma injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio. Em verdade a legítima defesa é inerente ao ser humano, pois é natural que se use os meios de defesa para repelir uma agressão. Guardadas as proporções, pode-se dizer que é um instinto humano. Entretanto, há limites que devem ser observados e nem toda resposta a uma agressão pode ser considerada legítima defesa. Nesse sentido, o legislador impôs limites e até sanções para eventual excesso. 

Em nosso ordenamento, é necessário que se façam presentes todos os requisitos dispostos no art. 25 do CP para que seja caracterizada a legítima defesa. Em verdade, a análise do caso concreto sempre será necessária para que haja a subsunção dos requisitos na atitude praticada. 

Assim, só há legítima defesa se caracterizada a agressão injusta ao agente, atual ou iminente, ou seja, a agressão está acontecendo ou prestes a acontecer, contra si ou terceiro e que a reação à agressão injusta se dê com os meios necessários a repeli-la, e em especial com o seu uso moderado. Em outras palavras, não se pode repelir um tapa com um tiro de arma de fogo, não se pode revidar hoje a uma agressão ocorrida ontem sob o manto da legítima defesa, não se pode continuar a agredir o seu algoz após repelida ou cessada a agressão que sofria, sob pena do meio ou modo utilizado para repelir a agressão ser caracterizado como desproporcional à gravidade da agressão, podendo caracterizar um excesso punível. 

Feitas tais considerações, uma análise não tão profunda já revela que a proposta de ampliar as hipóteses de legítima defesa era redundante em muitos aspectos, chegando a ser nociva se analisada mais atentamente. A redundância reside no fato da própria redação do texto que se previa acrescentar, remeter aos requisitos do caput do artigo, ou seja, “observados os requisitos do caput”. 

Ultrapassado esse ponto, têm-se ainda diversas inconsistências na redação dos incisos que, em suma, colocam situações repetidas, que já tinham previsão na redação sem os acréscimos, sendo apenas mais do mesmo, porém prevendo situações especificas que poderiam abrir margem para interpretações nocivas. Um dos pontos perigosos é que, apesar das muitas repetições contidas nos incisos propostos, estes não mencionam, principalmente, o uso moderado dos meios necessários. Não surpreenderia que alguém avançasse a interpretação de que esse requisito poderia não ser observado.

 Sem entrar nas minúcias de uma discussão técnica e jurídica sobre a redação dos incisos, as diversas situações conflitantes e as aberturas para interpretações perigosas à luz de situações concretas temos, em outras palavras, que: ampliar a legítima defesa significa ampliar a legítima defesa putativa. Significa que, mesmo à falta dos requisitos objetivos, o agente poderá ver-se isento de pena ou responsabilizado apenas por culpa, porque imaginou que se encontrava em situação que correspondia a esses (amplos) requisitos objetivos.

É daí que a proposta de modificação da excludente de ilicitude, no tocante à legítima defesa passou a ser taxada de licença para matar e, entre outras razões, levou o grupo de trabalho na Câmara dos Deputados a retirar da proposta formulada o texto original a ser apreciado futuramente. 

Entretanto, é necessário destacar que a doutrina deveria fazer uma mea-culpa já que, ainda que legislador perceba que a legítima defesa tal qual conhecemos, não dá conta do dia-a-dia dos agentes de segurança, e tenta resolver o problema apenas reformulando o instituto, é importante lembrar que o problema ultrapassa tal instituto, perpassando pelo direito penal, processual penal e até administrativo. 

Enfim, a proposta da forma como apresentada, por melhor que tenha sido a intenção ao propor as referidas mudanças, não conseguiu atingir seu fim. Contudo, não foi de todo ruim e a parte que trata o excesso na legítima defesa pode ser vista com bons olhos, se melhor trabalhada, do que os acréscimos que os incisos visavam fazer à legitima defesa, suspostamente, ampliando-a. 

Segundo Rogério Grego: “ Há boas razões para ser indulgente com quem se excede em legítima defesa: ele se encontra em situação excepcional, em geral irrepetível, em que outro o colocou arbitrariamente e que o sobrecarrega emocionalmente, de modo que estão diminuídas tanto a sua culpabilidade, quanto as exigências de prevenção da ordem jurídica.

Assim, inicialmente rejeitada a ampliação do conceito de legítima defesa pelo grupo de trabalho, o tema segue para nova deliberação para depois ser analisado pelo Plenário da Câmara dos Deputados.  

Por fim, pode-se concluir que a proposta como apresentada e o texto, a depender de como for aprovado após modificações, poderá incorrer em mais uma alteração legislativa que não passará de Direito Penal simbólico, isso se não piorar a situação. 

O Direito Penal simbólico quase sempre é utilizado para criar na sociedade uma falsa sensação de que o problema da violência está sendo adequadamente enfrentado pelas autoridades. É um Direito Penal de urgência ou emergência, isto é, defende-se uma necessidade imperiosa de reformar pontualmente a legislação penal, ainda que sem os devidos debates.

Assim, muito embora os estudos da criminologia já tenham demonstrado a inaptidão do Direito Penal para resolver o problema da criminalidade, incute-se no senso comum a ideia de que penas mais severas e a criação de novos crimes constituem posturas que irão resolver ou ao menos minorar o problema. Contudo, não nos parece ser esta a resposta mais correta para o problema da violência no país, muito menos aos anseios da sociedade.


Pedro Tonissi Manzano

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